Como tudo começou?

Enquanto revia vídeos e fotografias do meu pequeno de 4 anos (hoje com 7), que teima em crescer mais rápido do que eu consigo acompanhar, aproveitei para reler os diários que fiz desde a gravidez aos dias de hoje sobre cada momento (que julguei importante, essa ideia eu tive com a minha sogra que até hoje guarda escritos sobre fofurices do meu marido quando criança) registrado para que as trapaças da memória não as apagassem.


Foi neste caminho de reviver o passado que me descobri saudosa e percebi que precisava compartilhar as lembranças antes que esmaecessem sob a luz do dia a dia. Então, resolvi que postaria para amigos, familiares e outros curiosos do mundo pedaços desta minha vida, e ainda de lambuja deixar para o meu pimpolho histórias sobre ele mesmo para que um dia leia e sinta como foi esta jornada de chegar ao mundo e traçar seus próprios caminhos.


Espero que gostem e se emocionem um pouco, assim como eu ao revisitar minha história, e se entusiasmem para fazer uma visita à história de vocês.
Sejam bem vindos às "histórias sobre meu filho".

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Desconstruindo Miguel

Quando trouxemos Miguel da maternidade e os avós deram no pé assim que o pirralho começou a chorar e mijar, percebemos a enrascada em que havíamos nos metido. Noites em claro, choro sem motivo (será?), peito o tempo todo, Renata com olhos perdidos no infinito, instintos materno e paterno o escambau. Amor incondicional? Pois sim... Ausência de diálogo, sem esse papo de que o olhar diz muito, diz tudo. A palavra e a fala é que nos faz humanos, elas nos permitam compartilhar sentimentos, a forma como experimentamos o mundo, como o interpretamos. Quem não se comunica se trumbica. Miguel não era humano? Não chegaria a tanto, só sei que, numa madrugada, Renata pediu arrego e ligou pra mãe implorando socorro porque não conseguia fazer Miguel parar de chorar e um vulto no andar de cima ficava espiando para tentar descobrir de onde vinha o barulho desesperante. Primeira e única vez, marcante pra sempre.

Aos poucos, Miguel foi se humanizando. É incrível quando, caminhando na rua, você ouve seu filho ler, pela primeira vez, o letreiro de uma loja ou lê a página de um livro infantil pego na biblioteca da escola. No início, balbuciava alguns sons parecidos com palavras, depois palavras curtas inteiras e, de uma hora para outra, desembestou a falar, falar, falar e, hoje, não me deixa assistir em paz o noticiário da televisão porque o silêncio é um crime. A alfabetização lhe permite andar com os próprios pés, ler o mundo de seu jeito em diálogo com quem o circunda. Seu vocabulário faria corar de vergonha muito marmanjo com curso superior (“papai, eu estava me referindo a...”). É quando começa a fase dos “porquês” e não adianta responder “porque sim” porque “porque sim” não é resposta. E tome discussão e conflito e argumentação e contra-argumentação e cara amarrada porque, no final das contas, quem manda são os pais e se os pais dizem que não pode, não pode. Simples assim. Saudades do choro, que o peito alheio amainava...

Sentados à frente da televisão, assistimos desalentados os desdobramentos do massacre ocorrido numa casa de espetáculos de Paris. O repórter fala de terroristas e Miguel pergunta o que são terroristas. Explicamos que são pessoas ruins que causam terror, medo, dor naqueles que pensam diferente deles, geralmente matando. Ele pergunta se teve gente que conseguiu fugir antes de ser morta ou se conseguir se esconder dos alucinados.  Explicar o significado de uma palavra não parece tão complicado, pior é ter de ajudar a entender imagens que vê.

Certa vez, Miguel pergunta por que todos os bandidos são pretos (ou teria dito “negros”?). Perguntamos de onde ele tirou essa ideia, e ele responde que é o que vê na televisão. Temos que explicar que nem todo bandido é preto (ou seria “negro”?), que tem muito bandido de pele clara que não aparece no noticiário ou que, mesmo aparecendo no noticiário, não é apresentado como bandido.Sua percepção de que o crime ou o abandono tem a cor negra se repete quando, através da janela do táxi, vê um menino de rua cheirando cola. Renata me contou que, em outra oportunidade, Miguel disse que não gostaria de ter nascido preto porque os pretos são invisíveis. Socialmente invisíveis, acrescentaria eu, sem tirar sua sagacidade e perspicácia. Ele percebeu que, apesar de existirem fisicamente, indivíduos de pele escura, sobretudo aqueles que vagam pelas ruas do Rio de Janeiro, não existem para quem passa por eles, não são reconhecidos como parte da mesma sociedade, como um “outro significativo”.

Nosso dever é desconstruir estas percepções, ajuda-lo a reinterpreta-las, combater estereótipos, preconceitos, fundamentalismos de qualquer tipo. Dá trabalho, mas, se não fizermos nada, quem o fará? 

OBS: Este post é do papai para o Miguel.